Lembro-me como se fosse amanhã
Fecha os olhos, amiga, fecha as mãos,
não cabe mais nada nesse passado rigoroso
Voltando atrás faríamos tudo da mesma forma
Antes que desmorone, segura o ciclone,
sopra vagarosamente o vento,
Daqui para a frente o mundo é nosso
Se este barco rombo aguentar, se não abrires mão,
temos a bandeira, a pólvora e o rastilho
De agora em diante a vida é nossa
Não mais dentes entumescidos de ódio,
não mais... os terroristas somos nós
Voltando atrás faríamos quase tudo da mesma forma
De que servem as luas memoráveis
se o rastilho estava sempre a acender
Daqui em diante decreto o fim do luar
Amanhã não existe
Por causa de ti estou a desaprender de mentir estou de olhos enxutos e de alma enxugada A casa fica para trás o mundo para a frente Há tantas rugosas pedras por pisar tantas sombras por clarear tantas estrelas por nascer nuvens por desenformar Há uma cama mas quem se cansa quando corre por amor Há cantos redondos esquinas bicudas palavras esquinudas E há-de existir uma árvore há-de existir sempre uma pedra um seixo redondo dois seios redondos Deixa-os tocar-me Os teus olhos Fazer-me risos lágrimas Tem de ser hoje aqui Pois amanhã não sei ninguém pois amanhã não existe Por causa de ti o amanhã não existe O amanhã é sempre hoje
nós
dizes vezes sem conta
que noz não se escreve com um «z»
que se escreve com todas as letras
do nosso mundo
que dentro da alma
há uma sacristia
para nos vestirmos de sorrisos
que Deus dá a quem não tem dentes:
noz
Continua
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.
Alberto Caeiro
1. súplica
Usa os teus lábios
da mesma forma que usas as mãos
que nunca usaste nem abusaste
Repete aquela noite como se fosse a última
e que por acaso foi de dia
2. lembrança
Tinhas aquela mania
de fazer tudo até à perfeição
e era ternura mais que perfeita
Inventavas as gotas
e tecias as madrugadas
mesmo sem baba e sem orvalho
Bolinavas pelos dias à descoberta da aurora
e nunca a encontravas
bastava-te a procura
3. indiferença
Agora não queres saber
e eu fico assim num presente imperfeito
tal qual Affonso Romano de Sant’Ana
entre um orgasmo e outro
entre um poema e outro
4.
Vais cair de pé e renascer deitada
como um desejo grande que tanto tarda
Quem te observa tem de semear
quem te constrói vai de ceifar
5.
Para seres verdade tens de te despir
mas bem vestida podes mentir
Eras um soneto suave e delicado
para te conhecer apenas quando acabado
6.
A saudade por vezes é suficiente
para me reconfortar é evidente
Todos os dias, mesmo o de amanhã
nascem com o mesmo peso da manhã
7.
em Marte
Pode alguém dizer, em Marte, com fome de ternura, vamos ver o nascer do Sol meu amor ?
tal como o rio pergunta pela água
renascer (de novo)
Sempre a mesma brisa
o mesmo desejo
a luz fugaz do vaga-lume
o ansioso voo do colibri
sinto-me colorir com os matutinos raios de sol
é nas primeiras palavras do dia que te escuto
é esse primeiro lume que bebo sôfrego
atravessa-me e finjo nascer, finjo renascer
trabalho para povoar a memória
as árvores crescem vagarosamente
os braços alongam-se nus nossos abraços
não é suficiente desejar
Um rio claro
Acredita quando digo: descobri um rio claro
a correr dentro dos teus olhos, a correr
para as minhas mãos
É nele que vou pescando as palavras, aquelas
que dizem: contigo
a vida é possível
Como não tenho aquário não as guardo
fico assim de rosto nu à tua espera e a água
não sei a que mar vai desaguar
Fico assim à espera de estremecermos
porque tudo em nós é o mesmo
rio claro
aonde
Por vezes, não sei onde estás
Mas sei exactamente
o sítio onde te encontras
Há horas e dias em que não te vejo
Horas e dias a mais
Mas sei exactamente onde te encontras
Não é um ermo nem uma azinhaga
Nem tão pouco uma vereda
ou uma praia distante
Não é uma sombra, não é uma lenda
Nem um mundo perdido
Nem achado
Podia ser junto a uma fogueira
À beira de um rio
Ou numa nuvem eterna
Ou ainda no predefinido sítio
onde se espalham as estrelas cadentes
Ou mesmo nas nuvens de Magalhães
Podia até ser uma gaveta de néctar e de fel
Podia até ser tudo
e nada disto
Mas duas ou três coisas são seguras
Não há antes nem depois
Não há ontem nem amanhã
Há sempre um instante que emerge no mar de todas as dúvidas
Um acorde musical que lembra o que nunca foi esquecido
Uma palavra que teima em não ser escrita
Não há lei que proteja este país
Nem golpe que revolte este estado
Nem guerra que devaste esta região
É feito de pó e de tempo
Mas o tempo não existe
E o pó é apenas o que resta aquilo que nunca existiu
O mapa desta região nunca foi traçado
Portanto não há pistas
nem itinerários nem auto-estradas
É a região tão-somente onde estão os filhos
Onde se encontram os amigos
E por vezes as pessoas que amas
renascer
abres a janela
como quem
fecha o passado
e sorris
tens a boca
à mercê do vinho
e nas mãos
a lua morde
encontras pólen
no mamilo esquerdo
e despertas
para um voo nocturno
de nada valem
os gestos
encantamentos
as frases feitas
que importa a nuvem
e as folhas secas
continua
é hora de renascer
o dia amanhece
para lá do tempo
e tu dizes
somos imortais
mas só tu sorris
haikai 9
na luz do Outono
perdido fica, recuperado está
O canto do noitibó